Primeiro de Janeiro

Alan Dubner
5 min readJan 2, 2021

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Esse texto faz parte do livro que estou escrevendo. Em cada primeiro dia do mês escrevo uma carta, no próprio dia, que será publicada no capítulo de uma retrospectiva de 2020. Segue a carta relativa ao último mês de 2020:

Hoje, primeiro dia da terceira década do século XXI, me sinto como se o ano de 2020 tivesse durado uma década. O que foi esse ano? O que foi para você esse ano?

Será que alguém conseguiu entender o que realmente aconteceu? Como aconteceu? Como será que olharemos o ano de 2020 em primeiro de janeiro de 2031?

Vou ter que falar dos aprendizados com a própria pandemia. Não poderia ser diferente.

Algumas coisas “saltam aos olhos”. Em primeiro lugar quero enfatizar a nossa necessidade de acreditar em números, mesmo que saibamos que eles não sejam reais. A mídia passou a pandemia toda promovendo, diariamente, números que são sabidamente equivocados. Para que os números de casos, internações e mortes causados pelo Sars-CoV-2 fossem próximos do real, teríamos que ter uma combinação de fatores mensuráveis quase impossíveis hoje. Por exemplo teríamos que ter muito (mas muito mesmo) mais testes realizados; os testes teriam que ser confiáveis; as subnotificações precisariam ser contabilizadas; o viés econômico da saúde e da política precisariam ser contados ou descontados. O mais grave não é a geração e divulgação dos números e sim acreditarmos neles! Com isso, no mundo, estamos em segundo lugar em quantidade de mortes e em terceiro em números de casos. O que isso quer dizer? Nada! Simplesmente nada! A forma de contabilizar de cada país é diferente e só por isso não teria razão de ser em compará-los. Vamos fingir que os números estão corretos e são comparáveis só para pensarmos um pouco por outro ângulo do habitualmente divulgado pelas mídias. Se olharmos os números de mortes pela proporção de habitantes (o que deveria ser o mais justo), o Brasil iria para a 23ª posição, os EUA para a 14ª e a Índia para a 98ª. Em termos de testes realizados relativos à população, o Brasil está em 100º lugar. Vivemos momentos surreais com os números. No primeiro semestre ficamos apavorados com o crescimento vertiginoso das mortes que chegavam a mais de 100 por dia. No segundo semestre chegamos a nos acalmar com a estabilização de 1.000 mortes por dia… já podíamos respirar! Durante a eleição o vírus deu uma trégua… como assim? Agora em dezembro os números voltaram a subir, mas se não temos como compará-los com os meses anteriores… Quanto mais nos aprofundamos nas métricas, mais percebemos que elas não significam o que acreditamos. Fica a pergunta: por que precisamos acreditar em números? O livro navega pelas diversas possíveis respostas. Os números devem variar a cada dia, usei um dos indicadores: o “Worldmeters” no dia 1 de janeiro de 2021. https://www.worldometers.info/coronavirus

A segunda coisa a “saltar os olhos” é quanto as recomendações sanitárias. Para alguns era apenas uma gripezinha, para outros o fim do mundo. Para alguns o uso de máscara era recomendado, para outros só os doentes. Para alguns o vírus era perigoso nas lojas, para outros nos parques. Para alguns as escolas deveriam fechar, para outros abrir. Vivemos em 2020 a maior confusão por parte do que fazer, como, quando e onde. O que ficou claro é que nada estava claro! As recomendações eram tão antagônicas que dificilmente mereciam ser levadas a sério. Mas o pior de tudo isso foi (e ainda é) a repugnante condição humana de aproveitar uma tragédia dessas para praticar ações criminosas em benefício próprio lesando a humanidade e o seu entorno. Desde “passar a boiada” até artimanhas de alguns laboratórios. Estamos num momento tão atípico que o conceito de “banalidade do mal” de Hannah Arendt fica evidente diante do medo e das incertezas de futuro. As pessoas se dissociam do seu papel de responsáveis pelas ações que cometem, sentem que não são cumplices do mal que suas ações contribuem. Alguém que trabalha numa indústria que produz agrotóxicos que vai contaminar consumidores, agricultores, o solo e as águas, não se sente responsável pelas consequências que suas ações, por menor que sejam, causaram. No geral, alguém trabalhando numa mineradora não sente responsabilidade quando um crime arrasa uma região do tamanho de Portugal ou mata centenas de pessoas. O mesmo ocorre com uma pessoa que apoia um candidato, ela não se sente responsável por ter colaborado, seja mais intensamente ou apenas com o voto. Impressionante como alguns até se opõe fortemente, com seus eleitos, como se não tivessem nada a ver com aquele resultado. Essa é a banalidade do mal que faz com milhões de pessoas colaborem com o mal sem se sentirem responsáveis por esse mal. As palavras de Martin Luther King “Teremos que nos arrepender, nesta geração, não apenas pelas palavras e ações odiosas das pessoas más, mas pelo aterrador silêncio das pessoas boas.”, se encaixam perfeitamente no que está sendo feito aproveitando o medo gerado pela pandemia. Isso está ocorrendo no mundo! O Brasil, lamentavelmente, se destaca nessa área.

A terceira e talvez a mais importante constatação é a da ditadura da polaridade. Ela existe há muitos anos e nos últimos seis vem crescendo exponencialmente através das manipulações da mídia, principalmente das mídias sociais. O início dessa modalidade de manipulação começou em 2014 nas eleições brasileiras, depois foram profissionalizadas em 2016 no referendum do Brexit (que aliás começa hoje), na eleição americana de 2016 e foi crescendo extraordinariamente a ponto de ser muito difícil separar o joio do trigo. A pandemia fez emergir a parte mais obscura desse fenômeno que é a imbecilidade de rebanho. Trata-se de uma simplificação do pensamento e a erradicação do diálogo. Nada de pensamento sistêmico ou de frescura com filosofia. É nós ou eles! Simples assim! Você é a favor ou contra! Comportado ou rebelde! Certo ou errado! Normal ou anormal! Sadio ou doente! Esse modelo mental é tão absurdo, apesar de ser violentamente defendido, que me faz pensar o que seria dos computadores se essa prática binária fosse aplicada a eles. Um computador só entende ligado ou desligado (zero 0 e um 1). Passa energia ou não passa energia. No entanto a combinação de possibilidades de 0 e 1 é gigantesca permitindo existir tudo que temos até hoje com apenas diálogos entre ligado e desligado. Essa redução da complexidade humana nos faz perder a possibilidade de fazer as combinações imaginativas que tanto necessitamos para sobreviver a essa crise civilizatória. Ficamos reduzidos a ter que dizer se somos contra ou a favor da vacina contra o novo coronavírus. Como se fosse possível responder essa pergunta sem saber quais das mais de 100 vacinas estão se referindo, quais os resultados dos testes que estão sendo realizados, quais os riscos e muito mais. No entanto se você começar a fazer perguntas, você é considerado ser contra vacinas e provavelmente vacinas em geral. Isso está valendo e cada vez pior para tudo.

Acredito que o ano de 2020 foi um marco civilizatório. Vamos percebê-lo degustando, aos poucos, seu legado.

Seremos culturalmente mais colaborativos em cores, gênero, número e grau!

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Alan Dubner
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Written by Alan Dubner

Consultoria em Sistemas de Aprendizagem e Educação para Sustentabilidade

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